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Justiça Algorítmica e o Risco da Discriminação Automatizada

No mundo digital hiperconectado, algoritmos não apenas influenciam o que você assiste ou consome — eles moldam decisões que antes cabiam exclusivamente a seres humanos. No campo jurídico, essa transformação ganha nome: justiça algorítmica. A promessa é sedutora — mais eficiência, padronização e previsibilidade. No entanto, essa inovação carrega um alerta: o risco real da discriminação automatizada. Este artigo analisa como equilibrar o avanço tecnológico com a proteção dos direitos fundamentais.

A Ascensão da Justiça Algorítmica

A justiça algorítmica é a aplicação de algoritmos — muitas vezes baseados em inteligência artificial — para auxiliar ou automatizar decisões judiciais e administrativas. Seu uso já é uma realidade em diversas jurisdições. Tribunais utilizam softwares para sugerir penas, prever reincidência criminal ou agilizar trâmites processuais. No Brasil, ferramentas como o “Victor”, do Supremo Tribunal Federal, já auxiliam na triagem de processos com base em temas repetitivos.

Essa automação surge como resposta a problemas estruturais: excesso de demandas, morosidade processual e escassez de recursos. Em tese, algoritmos podem oferecer decisões mais rápidas, padronizadas e até mesmo menos influenciadas por vieses humanos. Mas a promessa de neutralidade tecnológica nem sempre se concretiza.

O Mito da Neutralidade Tecnológica

Ao contrário do que se costuma pensar, algoritmos não são neutros. Eles refletem — e, em alguns casos, amplificam — os vieses presentes nos dados com os quais são treinados. Em se tratando de justiça algorítmica, isso pode significar a reprodução automática de padrões históricos de discriminação.

Um exemplo emblemático é o caso do software COMPAS, utilizado nos Estados Unidos para prever o risco de reincidência criminal. Estudos revelaram que o sistema atribuía pontuações mais altas (indicando maior risco) a réus negros em comparação com réus brancos, mesmo quando as circunstâncias eram semelhantes. A opacidade dos algoritmos — o chamado “black box problem” — torna ainda mais difícil a contestação e a revisão dessas decisões.

No Brasil, o risco é igualmente preocupante. Bases de dados judiciais refletem práticas sociais e institucionais historicamente excludentes. Quando alimentadas por esses dados, ferramentas de justiça algorítmica podem perpetuar desigualdades, sob a aparência de racionalidade técnica.

Impactos no Acesso à Justiça e na Igualdade

A discriminação automatizada compromete diretamente dois pilares do Estado Democrático de Direito: o acesso à justiça e a igualdade perante a lei. Se decisões judiciais passam a ser influenciadas por sistemas que não consideram contextos sociais, econômicos e culturais específicos, corre-se o risco de desumanizar o processo judicial e reforçar estruturas de exclusão.

Além disso, a assimetria de compreensão tecnológica entre as partes — ou mesmo entre advogados e magistrados — pode gerar uma nova forma de desigualdade: o “letramento algorítmico”. Quem domina essas ferramentas pode ter vantagem, enquanto quem não as compreende fica à margem do processo decisório.

Caminhos para uma Justiça Algorítmica Ética

Para que a justiça algorítmica cumpra seu potencial sem comprometer valores fundamentais, é preciso estabelecer diretrizes claras e mecanismos robustos de controle. Algumas medidas essenciais incluem:

  • Transparência e Explicabilidade: Sistemas algorítmicos devem ser auditáveis. As partes precisam saber como uma decisão foi construída e com base em quais critérios.
  • Governança Multidisciplinar: A criação e avaliação de algoritmos jurídicos deve envolver juristas, cientistas de dados, filósofos, sociólogos e representantes da sociedade civil.
  • Regulação Responsável: É necessário um marco regulatório específico para o uso de IA no Judiciário, com regras que garantam direitos, responsabilização e mecanismos de correção.
  • Capacitação dos Operadores do Direito: Magistrados, promotores, defensores e advogados devem ser preparados para compreender o funcionamento dos algoritmos e seus impactos.

Conclusão

A justiça algorítmica representa uma fronteira promissora, mas delicada. Ao mesmo tempo em que oferece caminhos para um sistema mais eficiente, ela impõe desafios éticos e jurídicos de enorme complexidade. A crença ingênua na neutralidade dos algoritmos pode levar a um novo tipo de injustiça: aquela que se disfarça sob a aparência de precisão matemática.

Portanto, o futuro da justiça algorítmica depende de escolhas conscientes e políticas públicas que coloquem os direitos humanos no centro do desenvolvimento tecnológico. Em tempos de disrupção digital, mais do que nunca, é preciso garantir que a busca por eficiência não sacrifique os princípios fundamentais do Direito.

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Cyro Luiz Pestana Púperi

Juiz de Direito Aposentado – Advogado – Sócio Fundador do Escritório de Advocacia Púperi, Dutra e Moschem Advogados – Atuante na Área do Direito há mais de 40 anos – Palestrante – Escritor – Entusiasmado por Tecnologia e Evolução Tecnológica – Especialista em Direito Civil – Pós- Graduando em Direito Empresarial e LGPD – Cursando especialização em Legal Operation: Dados, Inteligência Artificial e Alta Performance Jurídica na PUC do Paraná - Participou de vários cursos nas áreas de Legal Design e Visual Law.